“Notícia de última hora:
Milhares, talvez milhões de pessoas desaparecidas. O mundo acordou com o desaparecimento de
milhares, talvez milhões de pessoas por todo o mundo. Os que ficaram procuram pelos
seus familiares e amigos ausentes. O acontecimento em massa levou a inúmeros acidentes
rodoviários, embarcações desgovernadas, aviões caídos, incêndios em edifícios e
muitas outras catástrofes. O caos originou mais caos, como motins, carros
incendiados e saques a lojas espalham-se por várias cidades e capitais. Todos
os países estão em alerta máximo, forças militares e policiais patrulham e
investigam no terreno. As linhas de emergência estão entupidas. Os prejuízos
humanos, financeiros e económicos são nesta altura incalculáveis.” (Excerto
de: Notícias ao Segundo – Notícias do país e do mundo)
— Sabes que o Valter é
um dos desaparecidos e os pais também desapareceram. — Afirmou Paulo
Castanheiro falando ao telemóvel com o amigo. — E na minha aldeia sei de pelo
menos mais uma pessoa. Viste os ovnis na televisão? Há quem diga que eles são
os responsáveis pelos desaparecimentos. Há ovnis por todo o lado, está um
enorme por cima da Sé de Viseu, pairando no ar, silencioso, desafiando a
gravidade aparentemente sem esforço. Hum, não sei, dizem que são amigáveis, mas
não acredito. Até agora não houve atos de violência, é verdade. Tudo isto me
deixa confuso, na verdade os cristãos falam no Arrebatamento há muitos anos. No
Facebook do Valter, na descrição do seu perfil, encontrei um link para um site religioso onde descrevem
esse tal de Arrebatamento. Mais estranho ainda é a carta escrita pelo próprio
Valter explicando o futuro desaparecimento massivo e alertando para o embuste
que seria perpetrado.
—
Vê o que está dar na TV, transmissão em direto de Jerusalém…. — Exortou o José
Palito encostando a boca ainda mais no telemóvel. Paulo notou o tom aflitivo do
amigo e virou-se para conseguir ver a TV projetada na parede interior do bar
que costumava frequentar. Sentiu um arrepio na nuca ao ver a imagem majestosa e
imponente da criatura de luz ao mesmo tempo infernal e angelical. — Efetua
milagres, estão a dizer que é Deus! Autointitula-se de Deus. As pessoas
estão a adorá-lo!
—
Tem traços de anjo, é verdade, no entanto há algo nele que me assusta
profundamente! A carta mencionava os falsos messias e os seus grandes sinais e
prodígios que enganariam as gentes. Sim, maus tempos nos esperam daqui em
diante. A perseguição aos cristãos vai aumentar exponencialmente, a liberdade religiosa
findará e as tribulações aumentarão! Afogamo-nos sem saber, é mister que não
falhemos o último barco salva-vidas. A salvação por Jesus daqueles que o
receberem e não aceitarem a marca da besta. Se a isso for obrigado, fugirei
para o fim do mundo e lá encontrarei um buraco para me esconder...
—
Oh! Buraco!? Para onde irias tu?
—
Ainda não sei, mas alguma coisa me ocorrerá.
Durante várias semanas o Paulo preparou-se
para o exílio. Em viagens de prospeção na sua mota de crosse encontrou na serra
um lugar que era agreste e isolado. Fez tudo às escondidas, não podia e não
queria confiar em outras pessoas. Armazenou em três sítios diferentes a comida com
longa duração de validade que comprara. Um dos locais era a pequena gruta que
seria a sua moradia principal. Com muito esforço conseguira ampliar o espaço
interior a dimensões habitáveis, retirando algumas toneladas de terra pela
estreita abertura e espalhando-as ao vento. Os outros locais seriam
principalmente armazéns de víveres e pontos alternativos de refúgio, funcionais
porém mais pequenos. No dia da mudança final, Paulo saiu de casa na sua mota e viajou
até um ermo a quatro quilómetros do refúgio principal. Embrulhou o veículo numa
lona e cobriu-o de terra e caruma. Viajava leve, pois a maioria das coisas já
tinha transportado em viagens anteriores. O resto do percurso percorreria a pé.
Um vento frio e sonoro atravessava a
montanha. Ele restolhava nas árvores e silvava nas rochas com sobranceria. Sob
o céu negro, Paulo, sentia o calor corporal ser-lhe roubado com cada lambidela
gélida. Quando entrou no buraco a que chamaria de casa nos próximos dias e anos,
sentiu-se aliviado. Acomodado no interior, rolou uma pedra espalmada até tapar
a abertura e finalizou com um cortinado em pano grosso. Certo que luz alguma
seria visível do exterior, ligou a lanterna de cabeça e em seguida procurou e retirou
duma caixa cheia de baterias um pequeno rádio AM/FM. Sentado no colchão e encostado
à parede granítica, ligou o aparelho recetor: “…obrigando as pessoas que vivem nas áreas controladas a converterem-se
ao islamismo e sob a lei charia, o estado islâmico continua a crescer em área e
quantidade de seguidores. A alternativa à conversão é a tortura, mutilação e
morte….” Com raiva o Paulo desligou o rádio e atestou:
—
É mil vezes melhor o espírito vivo, ao corpo morto!
Alguns anos depois:
Apesar de banhada pelo Sol nascente
a manhã era fria. Os raios solares diluíam lentamente o manto de orvalho
congelado que cobria a montanha. O Paulo Castanheiro ergueu-se com a primeira
luz e, como de habitual, começou a ler a Bíblia. Longe da internet, telemóveis,
televisão e muitas outras distrações, finalmente tinha tempo para Deus. Agora
que estava sozinho, a solidão desaparecera e pela primeira vez sentia paz, a verdadeira
paz. Antes de sair para verificar as três armadilhas que tinha armado no dia
anterior, tomou o pequeno-almoço de feijões cozidos com presunto. Evitava o uso
de artifícios que, obviamente, anunciavam presença humana na área. Por isso limitava
o seu uso e para cozinhar a caça acendia pequenas fogueiras durante a noite no
interior da caverna. Habituara-se ao fumo proveniente da combustão lenta da
lenha e da carne a assar. O Paulo desceu no terreno até encontrar a primeira
armadilha armada e vazia. Dez minutos depois via uma outra que estava desarmada
e vazia, armou-a. Dirigia-se à última armadilha quando escutou o latir de cães
de caça e comoção alguns metros à frente. Não teve dúvidas de que se tratava de
uma patrulha em ronda e rapidamente bateu em retirada. Não regressou ao abrigo,
fazê-lo seria um erro pois os cães pisteiros facilmente o farejariam. Era a
altura de colocar o plano de emergência em ação e com essa intenção correu na
direção da lagoa a noroeste. Já perto da margem, por entre um amontoado de rochas,
retirou o saco hermético que continha o fato de mergulho. Trocou de vestimentas
e colocou no saco as roupas antigas, mais uma rocha para que não viesse à tona.
Sob a pressão crescente dos latidos frenéticos dos cães farejadores, o Paulo
mergulhou e nadou até um amontoado de juncos. Manteve-se submerso utilizando o
tubo respirador para a troca de ar com o exterior. Quando começou a ficar
gelado, urinou dentro do fato para se aquecer. Durante uma hora resistiu à
tentação de emergir. Finalmente decidiu espreitar por entre a vegetação. Apesar
de as margens estarem tranquilas, ficou mais alguns minutos observando-as. A
tremer de frio regressou à margem e esperou até escurecer.
Sob a luz ténue do quarto crescente,
Paulo dirigiu-se a um dos abrigos secundários. Não mais voltaria a entrar no
abrigo principal. Quase exausto, afastou os arbustos que davam acesso ao buraco
de entrada e arrastou-se para o interior. Encantoado, abriu uma lata de comida
em conserva e comeu até ao fim. Queria dormir, mas o medo mantinha-o acordado.
Receava que os cães pudessem apanhar o seu rasto e o seguissem até à nova localização,
encurralando-o. Apenas quando começou a chover é que Paulo se sentiu mais
seguro. A chuva apagaria os odores e desmotivaria os perseguidores. Adormeceu
rapidamente.
Um barulho assustador como o de mil
leões a rugir acordou o Paulo. Ele saltou da posição de deitado e foi até à
entrada do refúgio. Uma luz branca como a neve iluminava o céu e toda a terra. Era
dia, no entanto, extraordinariamente, não era dia. Era o maior meteorito que algum
dia um ser vivo presenciara. Uma montanha rompia a atmosfera e caía em direção
à Terra. Sabendo que não valeria a pena fugir, Paulo saiu do esconderijo, ajoelhou-se
nas ervas altas e proferiu “Jesus! JESUS!” O fim veio para muitos, mas para
Paulo Castanheiro foi apenas o início.
1 comentário :
Parabéns pela sua escrita, criatividade, coragem, estudo e empenho!
Gostaria de ler a carta que o Valter deixou escrita, será algum dia possível?
Obrigado pela sua partilha!
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